Alguns eventos têm a capacidade de moldar o futuro de forma estratosférica, alterando acontecimentos que antes pareciam inevitáveis. Até mesmo pequenas ações podem influenciar o porvir, sejam intencionais ou não. Um desses eventos ocorreu entre os meses de julho e agosto de 1924, perto de Lyon, quando um jovem italiano de 26 anos tomou uma decisão que até hoje está cercada de mistério. Essa decisão levaria ao início da ascensão desse jovem ao comando de uma equipe que mais tarde o influenciaria na criação de outra, que se tornaria ainda mais marcante: Ferrari.
Dentre vários mistérios que cercam a vida da figura de Enzo Ferrari, este é um dos mais interessantes.
Filho de ferreiro modenense, Enzo foi levado por seu pai para assistir ao espetáculo Circuito di Bologna em 1908, aos dez anos de idade. Lá, o pequeno italiano viu Felice Nazzaro em seu FIAT vencer a Coppa Florio. A paixão de Enzo Ferrari começara...
Em 1916, durante a I Guerra Mundial, Enzo Ferrari perde seu pai e seu irmão, sendo forçado a largar os estudos e a trabalhar como instrutor na escola de torneamento da oficina dos bombeiros de Modena. No ano seguinte, Enzo serviu ao exército italiano sendo designado para a 3º Divisão de Artilharia Alpina. Ele acabaria ficando gravemente doente, tendo de passar por duas cirurgias antes de ser desligado da 3º Divisão.
Já com a Grande Guerra chegando ao fim, Ferrari tenta emprego na FIAT, mas é negado. Ele se manteve em Turim onde encontrou uma empresa que construía veículos com excedentes da guerra. Em 1919, Enzo conhece Ugo Sivocci, piloto de testes da Construzioni Mecchanice Nazionali (CMN). Graças à esse encontro, Ferrari fez sua estreia em outubro com um quarto lugar na corrida de subida de montanha de Parma-Poggio di Berceto.
Em novembro de 1919, Enzo Ferrari corre na 10º Targa Florio. Sem pretensões de vitória, o piloto de 21 anos seria perseguido por uma matilha de lobos no caminho para a corrida, que foram dispersos após o modenense usar seu antigo revolver de serviço militar. Tentando sobreviver às intempéries de uma Targa Florio, Ferrari não estava classificado como um dos pilotos que terminou a prova, já que perdeu quarenta minutos após sofrer um vazamento no tanque de combustível.
Enzo Ferrari e Michele Conti na Targa Florio de 1920 |
Em 1920, Enzo Ferrari supera os problemas enfrentados na edição anterior e termina numa impressionante segunda colocação, com a melhor volta da prova, e atrás apenas de Guido Merengalli. Esse foi o primeiro resultado de expressão do modenense a bordo, agora, de um Alfa Romeo Tipo 40/60. No ano seguinte, é segundo colocado em Mugello e quinto na Targa Florio, antes de sofrer um forte acidente nas vésperas do Grande Prêmio de Brescia, quando um rebanho de gado invadiu a estrada e Ferrari se viu obrigado a desviar de forma brusca. Felizmente, Enzo terminou 1921 como um piloto cada vez mais conhecido, já sob as asas da Alfa Romeo e, é claro, vivo.
Após um 1922 apagado, Ferrari teve os melhores anos de sua carreira entre 1923 e 1924, vencendo quatro provas: duas Circuito del Savio, uma Circuito del Polesine e a 1º Coppa Acerbo - superou também Tazio Nuvolari em duas ocasiões! Após vencer o Circuito del Savio em 1923, Enzo Ferrari encontrou o Barão de Baracca, pai do ás italiano Francesco Baracca, que voara com um cavalo rampante pintado em seu avião durante a Grande Guerra. A Baronesa Baracca então entregou ao piloto uma fotografia autografada e o direito de usar o desenho de seu filho, assim surgindo o cavalinho rampante negro com fundo amarelo da Scuderia Ferrari.
Com o recém-lançado P2 (uma quase copia do FIAT 805/405, modificado por Vittorio Jano), a Alfa Romeo foi para Pescara com o desejo de massacrar as Mercedes de Giulio Masetti e Giovanni Bonmartini na Coppa Acerbo em julho de 1924. O primeiro piloto da esquadra italiana era Giuseppe Campari, que correu com o novo P2 enquanto Enzo Ferrari continuava com um velho RL, sob ordens de deixar Campari passar caso seu companheiro se encontrasse atrás dele (que coisa, não?).
Para sorte de Ferrari, Campari abandonou ainda no início da prova, escondeu seu P2 em uma das ruas da rota de Pescara e passou a impressão aos Mercedes de que ainda estava na corrida. Enzo então segurou Bonmartini e sua Mercedes 28/95PS e venceu a Primeira Coppa Acerbo, uma conquista incrível que o renderia uma chance única dias depois.
O início do mistério.
No mesmo mês de julho, Enzo Ferrari foi convidado a participar de sua primeira corrida internacional. A Alfa Romeo inscreveu quatro carros para o Grande Prêmio da França, uma das três principais corridas do mundo, que seria realizado no dia 3 de agosto aos arredores de Lyon e Givors em um circuito de mais de 27 km. Enzo Ferrari, Giuseppe Campari, Louis Wagner e Antonio Ascari quatro P2. Pela primeira vez, o jovem piloto de 26 anos enfrentaria grandes nomes como Albert Divo, Robert Benoist, Ernest Friedrich, Dario Resta, Jules Goux e Louis Zborowski e com um carro capaz de derrotá-los.
Depois do primeiro dia de testes, no dia 18 de julho, Enzo Ferrari misteriosamente desapareceu. Onde estava o mais novo italiano da Alfa Romeo? Ele havia voltado para Modena, alegando problemas de saúde, muito provavelmente um colapso nervoso. Isso permanece um mistério. O que haveria feito Ferrari abandonar tão abruptamente aquela que seria a maior corrida de sua carreira? Qualquer registro daquele dia de testes desapareceu durante a II Guerra Mundial, como também a possibilidade de averiguar o desempenho de Enzo contra os grandes nomes da Europa. A prova seria vencida por Giuseppe Campari após Antonio Ascari ter problemas nas últimas duas voltas. Um domínio do Alfa Romeo P2.
Para deixar a situação ainda mais intrigante, Ferrari só voltaria a correr entre os anos de 1927 e 1931, o que aumenta o número de teorias sobre o motivo de seu abandono em Lyon. Estaria ele já planejando alguma posição administrativa dentro da marca? Quem vencesse uma prova de tamanha grandeza como GP da França estaria fadado a ser um piloto prestigiado e com a missão de mostrar que aquilo fora talento, sob ameaça de ser ridicularizado caso sumisse das corridas. Talvez a resposta não seja a de que Enzo era superior ao resto, mas sim que seu orgulho foi ferido quando percebeu que não conseguiria ser tão bom quanto os melhores.
Mais tarde na vida, Enzo Ferrari diria que sofreu um colapso nervoso e que gostaria de ser um grande piloto, mas não o era. Fez essas declarações de formas esparsas, nunca interligadas, sem nenhuma declaração oficial do que ocorrera em Lyon. Antonio Brivio, um dos pilotos da Scuderia Ferrari nos anos trinta, diria a Pino Allievi, da Gazetta dello Sport, que Ferrari havia abandonado porque havia percebido que não conseguia acompanhar os melhores.
Os desdobramentos da fuga de Ferrari seriam marcantes. Ele passaria a competir apenas em provas regionais, sem chamar atenção, vencendo provas ali e aqui sem aspiração nenhuma de conquistar o mundo. Com o tempo, seu conhecimento mecânico e sua habilidade exímia como homem de negócios, colocaram ele sob comando de sua própria equipe, a Scuderia Ferrari, fundada em 1929, que preparava carros da Alfa Romeo para competição. Era o início de uma história de conquistas, prestígio e paixão por velocidade.
Em Lyon, Ferrari acabara escolhendo entre Enzo piloto e Enzo construtor. A escolha todos nós sabemos qual foi. E somos gratos por isso.
Fontes:
Enzo Ferrari e il mistero irrisolto di Lione
Dalla "Parma - Poggio di Berceto" del 1919 al "Circuito delle Tre Provincie" del 1931
1924 FRENCH GRAND PRIX
Enzo Ferrari
18 – 1924 French GP
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